A última consequência

O JUIZ SÉRGIO MORO declara que o auxílio-moradia é uma compensação aos juízes pela falta de reajuste dos vencimentos. Não há como discordar do juiz. Aliás, quem ousa discordar do juiz que se transformou na palmatória do Brasil: ai de quem fizer algo ilegal no Executivo, no Legislativo e nas estatais e cair na vara dele. É sentença confirmada pelo TRF do sul. O juiz Moro sabe o que a lei manda e, sabendo, manda para a cadeia quem descumprir a lei. A questão do auxílio-moradia ricocheteou nos dois juízes da Lava Jato, Moro e Marcelo Bretas, do Rio. Moro mora em casa própria e Bretas mora em mansão, vista para o Pão de Açúcar.

Moro, Bretas e a mulher de Bretas, também juíza, todos recebem o auxílio-moradia, ainda que tendo e residindo em imóveis próprios. O juiz Moro é franco: não é auxílio-moradia, mas subterfúgio para contornar a falta de reajuste dos vencimentos dos juízes. Conclusão: o auxílio-moradia é ilegal, pois não se dirige a indenizar o aluguel de casa, mas suprir a falta de reajuste dos vencimentos. Portanto não é auxílio coisa nenhuma. Aliás, qualquer juiz brasileiro tem na ponta da língua o que o auxílio-moradia significa de acordo com a definição do juiz Moro: desvio de finalidade, o ato ilegal dentro do Estado pelo qual se faz uma coisa para obter outra.

O exemplo de escola famoso é remover o funcionário para puni-lo. Por que: (1) porque a punição é pena por falha no cumprimento dos deveres do cargo e (2) a remoção se destina a atender uma necessidade do serviço. Ou seja, a necessidade do serviço não pode ser satisfeita com a punição do funcionário. E vice-versa. O juiz Moro disse tudo: (1) o auxílio-moradia, para suprir o aluguel é (2) usado para aumentar vencimentos. Como se chama isso? Desvio de finalidade. Como se resolve o desvio de finalidade? Anula-se o ato e pune-se quem o pratica. Mas o juiz Moro fala do auxílio-moradia sem a preocupação com as consequências que ele aplicaria como juiz ao julgar um caso de desvio de finalidade.

O juiz Moro age contra a lei? Sim, age, e isso quem diz é ele mesmo. Tem punição? Não, não tem. Primeiro, porque o juiz Moro não é o único juiz que recebe o auxílio-moradia sem ser para pagar moradia; a maioria dos juízes brasileiros está na mesma situação. Segundo, e aqui entra o ponto sensível, o punctum dolens, como diriam os juízes: os juízes não são punidos no Brasil; quando são, é pela pena mais branda, a da aposentadoria compulsória. Criou-se – melhor diria, os juízes criaram – essa mística de que o que quer que se faça contra o Judiciário, para o bem ou para o mal, atinge a mais sacrossanta e respeitável reserva de proteção da cidadania, da nação e da democracia.

Mas as coisas não são assim. Não é só o auxílio-moradia que revela deformações do Judiciário. Há outras, até mais graves, algumas sob a forma de auxílios também disfarçados de benefícios salariais, a recusa sistemática em abrir informações financeiras internas para o público, a tolerância com os desvios de magistrados, sem contar o nepotismo, que também se incrusta na magistratura. Como vai se resolver a questão do auxílio-moradia? Já está alinhavada a solução no Congresso: incluí-lo no vencimento dos magistrados, a derivação do pensamento do juiz Moro. A ilegalidade será resolvida pela conciliação, como sempre.

Só há um ponto interessante nisso tudo – interessante, insisto, mas não positivo: a denúncia do auxílio-moradia ganhou força com a condenação de Lula. O PT e seus líderes elevaram o auxílio-moradia como a ilegalidade maior entranhada no Judiciário. Não chegaram ao ponto de dizer que ela se equipara aos desvios de finalidade com cores de corrupção do PT: os honorários de consultoria, de palestras, o sítio e a cobertura na praia, entre outros. Seria demais, compensar a ilegalidade própria com a alheia. Mas o juiz Moro e o juiz Bretas – por todos – não percebem que aqui a diferença é de grau e de latitude. Porque a ilegalidade existe. Dos dois lados.

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